sábado, 1 de maio de 2010

Um conto de Alice Vieira - As Novas Tecnologias .........




A SENHORA DO PAI


Quase todas as semanas compro a revista "ACTIVA" formato de "bolso" e passo a publicidade, e uma das coisas que faço sempre em primeiro lugar é a procura dos textos de Alice Vieira, além de gostar imenso da forma como ela expõe as ideias, de uma forma tão real e tão engraçada, que por muito que nos apeteça chorar acabamos por rir ou meditar na veracidade das suas palavras.
Este ultimo texto então deixou-me de "rastos", primeiro porque achei que com esta idade já não era tão incrédula, segundo porque fiquei de rastos com a hipocrisia que cada vez está mais lactente nos indivíduos.
Vou limitar-me a transcrever o texto na integra e deixar a quem não leu a revista que não acredite nas palavras que lhe disse ao chamarem-lhe estúpida entre dentes:
" A princípio nem ligou. Sempre que voltava do pai, ele não se calava, naquele seu linguajar de bébé, a querer meter o mundo todo nas poucas palavras que o seu vocabulário permitia. Ela sorria, enquanto ia desfazendo a mala de fim de semana, com o rato Mickey de enormes orelhas estampado bem a meio. Foi a insistência dele que lhe chamou a atenção. E foi então que, nitidamente, percebeu o que ele dizia. "A senhora do pai". Sentou-o ao colo, fez-lhe uma festa no cabelo, tudo com muita calma, e foi murmurando: "A senhora do pai?" Ele acenou com a cabeça. "O pai tem uma senhora?" Ele acenou com a cabeça.
- Miguel, olha para a mãe ...
Ele fixou nela os seus olhos esverdeados.
- Diz à mãe ... O pai tem uma senhora?
Ele voltou a acenar e acrescentou:
- No carro.
Ela ia perdendo a cabeça. Ainda não estavam divorciados e já ele andava a enfiar mulheres dentro do carro, e logo no fim de semana em que ela o deixara ficar com o filho. Podia-se pensar que, pelo menos nesses dias, ele se portasse como um pai a sério, até porque podia estar em causa a futura regulamentação do poder paternal, mas não, se calhar "a senhora" até já lá ficava em casa ...
Tentou acalmar-se: "E quando o pai veio trazer o Miguel, a senhora estava no carro?" Ele voltou a acenar com a cabeça, mas, farto do interrogatório, deslizou do colo da mãe e foi brincar. Ela ainda pensou em ligar à mãe a contar, mas desistiu.
- Vamos conversar, meu menino ... - murmurou, discando o numero dele no telemóvel.
Combinaram encontrar-se no café.
- Estás com uma voz! - disse ele - É grave?
- Daqui a dez minutos - repetiu ela.
- Não pode ser aí em casa? - estranhou ele.
- No café - disse ela, desligando.
Não queria correr o risco de o Miguel entrar na sala e ouvir a conversa, o café era sítio neutro.
Assim que ele chegou, nem o deixou falar.
- Não me podias ter dito que já tinhas arranjado uma namorada?
Ele olhou-a, espantado.
- Que eu o quê?
- Não te faças de tolo. O Miguel contou-me.
Ele parecia cada vez mais espantado:
- Mas contou-te o quê?
- Que tinhas uma namorada.
- O Miguel disse isso? Uma namorada?
- Disse que o pai tinha uma senhora no carro ... Sabes o vocabulário dele ainda ...
Uma enorme gargalhada dele interrompeu-lhe o discurso, e surpreendeu-a, aquele não era propriamente um motivo para risada.
- Uma senhora ... no carro ... - repetia ele, rindo cada vez mais. Depois recompôs-se, e disse:
- E claro que pensaste logo no pior. Que eu tinha metido o meu filho no carro com uma galdéria qualquer ... Nunca te passou pela cabeça que fosse ...
- Que fosse quem?
- A voz do GPS a ensinar o caminho?
Ela olhou-o sem saber se devia ficar furiosa consigo própria, se rir à gargalhada.
- O Miguel ouviu, ficou muito admirado, eu entrei na brincadeira e disse-lhe: "O carro novo do pai tem uma senhora!"
Acabaram por rir os dois, ela a censurar-se por aqueles ciúmes doentios que nem com a separação tinham passado. Voltou para casa, contente por não ter falado com a mãe, o que ela não lhe diria agora, quando ela lhe contasse.
E ele entrou no carro, sorrindo. Tirou o telemóvel do bolso, discou um numero e disse:
- Pronto, tudo arranjado. Veio-me à cabeça uma desculpa verdadeiramente genial! Depois conto-te . mas temos que ter mais cuidado ....."
Texto de Alice Vieira, publicado na revista Activa